O contexto produtivo-social atual privilegia formas de constituição subjetivas que são capazes de sustentar intensas exigências em relação à qualidade do trabalho realizado, à quantidade de produção realizada, à infindável disponibilidade ao trabalho, deslocando para segundo plano necessidades, transitoriedades e dificuldades que são próprias de cada sujeito. Esse mesmo contexto social, balizado pela lógica do capital, tem produzido um quadro crítico no que diz respeito ao trabalho. A grande massa de desemprego estrutural e um crescente número de trabalhadores em condições precarizadas sinalizam tal crise apontando para a necessidade de discussões críticas acerca de tal sistema de produção, e para a necessidade de criarmos dispositivos sociais, balizados em outros princípios, que promovam a solidarização e a sociabilização humanas. Diante disso, podemos observar o crescente aumento do número de associações e cooperativas que tentam “driblar” os ditames da organização contemporânea do trabalho.
No que concerne a área da Saúde Mental, podemos verificar a intensificação dos efeitos de exclusão social e produtiva que tal sistema produz, já que os sujeitos portadores de transtornos psíquicos raramente podem ter suas dificuldades e potencialidades singulares acolhidas e validadas.
A proposição de um projeto vocacionado para a inclusão social de pessoas portadoras de transtornos psíquicos graves, por meio da participação ativa no mundo do trabalho, reflete uma intenção de encarar esta difícil questão. Este é o objetivo principal do “Núcleo de Preparação para o Trabalho”, que cria um dispositivo clínico comprometido com a ética da cidadania ativa e com a humanização dos dispositivos de tratamento. Entendemos por mundo do trabalho, não só as instituições sociais empregadoras que constituem o mercado de trabalho formal predominante na atualidade, mas também as organizações sociais oferecedoras de possibilidades de inclusão produtiva que se encontram a margem desse mercado, como as oficinas de trabalho de nosso projeto.
Para a obtenção de nosso objetivo principal, buscamos confeccionar produtos com qualidade e competitividade; capacitar os participantes e mobilizar suas competências para responder as exigências externas; reintegrar trabalhadores excluídos às suas funções anteriores; conscientizar familiares sobre sua importância como sustentadores desse lugar social; sensibilizar a comunidade para a importância da inclusão desses sujeitos, e produzir conhecimento que seja subsídio para práticas e políticas de ação nessa área.
Nossa experiência permite que avaliemos os efeitos clínicos nas subjetividades dos participantes de nosso projeto. Ao serem estimulados no desenvolvimento de novas habilidades, validando suas potencialidades, possibilitando que construam um lugar economicamente produtivo na sociedade, tais sujeitos adquirem maior autonomia para sua subsistência, com um significativo aumento do auto respeito e da auto estima. Passam a ser reconhecidos e valorizados socialmente, deixando o status de tutelados, podendo exercer seus direitos e deveres de cidadãos.
A conduta clínica praticada em nosso projeto se ancora na articulação entre o contexto de trabalho e o contexto clínico. Através do olhar impregnado pela experiência clínica, com capacidade de discriminação e avaliação dos conteúdos psíquicos que atravessam o processo de apropriação do trabalho e o conhecimentos da história de cada participantes e da posição subjetiva que ocupam em suas relações com o mundo, os coordenadores das oficinas realizam intervenções que propiciam o enfrentamento e a superação das dificuldades, validando as potencialidades e a construção de um lugar legítimo no grupo de trabalho.
Essas intervenções não são interpretações estritamente clínicas, mas intervenções facilitadoras que objetivam a sustentação do grupo de trabalho, a continuidade do processo produtivo, e o enfrentamento da fragmentação e do isolamento psicótico diante de tal tarefa. Os coordenadores tal qual os participantes também são trabalhadores, se implicam com o processo produtivo, na busca de alguma horizontalidade, possibilitadora da apropriação do trabalho e da responsabilização por ele.